Pacientes esperam, em média, sete meses por decisão da Justiça Federal para ter remédios e itens de saúde do SUS.
Pedidos de pessoas que dependem de insumos como medicamentos caros e fraldas têm sido encaminhados para instância federal após decisão de STF sobre assunto.
Ao ser diagnosticada com atrofia muscular espinhal do tipo 2, Luiza Gandara, de dois anos, precisava receber um medicamento específico, que produz a proteína ausente no seu corpo e estimula os neurônios motores. Mas a dose do remédio custa R$350 mil e não foi encontrada na farmácia popular. Restou à família, então, acionar a justiça para garantir o direito ao acesso, o que deu origem a uma longa batalha. Desde o diagnóstico, em março, foram quase quatro meses de decisões judiciais até que o insumo chegasse à casa de Luiza, e parte da demora, explicam os familiares e a Defensoria Pública do Rio (DPRJ), se deve a um novo entendimento que vem sendo adotado nos tribunais.
Após uma decisão da 1ª Turma do STF, há cinco meses, sobre a responsabilidade de entes federativos em relação a serviços e políticas públicas de saúde, processos que antes resultavam em rápidas liminares passaram a ser enviados para a Justiça Federal, o que aumenta o tempo de espera por uma decisão.
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Há tempos, estados e municípios, muitas vezes obrigados a custearem os remédios reivindicados na justiça, fazem pressão para que a União seja a responsável pelos pagamentos. O que o STF decidiu é que todos os entes têm responsabilidade solidária, mas algumas hipóteses foram definidas para que a Justiça Federal seja acionada, o que iniciou a mudança de entendimento de alguns juízes de primeiro grau.
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Normalmente uma liminar, nos tribunais estaduais, é conseguida em até dois dias, mas quando o caso é remetido a um juiz federal, a sentença demora, em média, sete meses até ser proferida, aponta um estudo do Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos-Gerais (Condege). Além disso, outro empecilho é que a Defensoria Pública da União (DPU), responsável por assistir o cidadão nas ações contra a União, não tem a mesma capilaridade que as defensorias estaduais, estando menos presente em cidades pequenas. Muitos juízes têm mudado de posição sobre a competência estadual ou federal do caso até durante o processo, como foi no pedido para o remédio de Luiza. O remédio Spinzara, que ela precisa, foi recentemente incorporado à lista oficial do SUS, mas demorou a ficar disponível nas farmácias populares. Apesar de conseguir uma liminar logo após ingressar com a ação, no Tribunal de Justiça do Rio (TJRJ), Gandara diz que o município recorreu, o que fez com que a juíza pedisse o bloqueio nas contas da prefeitura. Quando o dinheiro foi separado na conta judicial, porém, a juíza mudou de entendimento e ordenou a devolução ao alegar que a competência do caso era da justiça federal. — Foram uns quatro meses de enrolação. Hoje minha filha já está melhor, mas infelizmente ela apresenta sequelas pela demora pra tomar a medicação. No período, a doença avançou e a Luiza perdeu força e alguns movimentos, como ficar em pé sozinha — afirma Diego Gandara, pai de Luiza. — Com o início do tratamento, alguns movimentos estão voltando de forma gradativa, mas ainda não como era antes.
A história só teve um desfecho positivo há cerca de um mês, quando o medicamento chegou às farmácias populares, ou seja, antes de uma sentença judicial. Luiza já tomou três das quatro doses aplicadas nos primeiros 15 dias de tratamento. Posteriormente, é necessário tomar uma dose de reforço a cada quatro meses. — O processo ainda consta em aberto, aguardando a juíza definir. Se tivéssemos que esperar, minha filha estaria nem sei como, talvez nem estivesse mais entre nós — diz Gandara. ‘Está muito lento, a gente é humilhado’, protesta mãe Renata Cristina Brasil também depende da justiça para que seu filho, João Gabriel, de 6 anos, receba o tratamento adequado. Moradora do Rio, ela teve zika durante a gestação e João nasceu com micro e hidrocefalia. Desde então, ela parou de trabalhar como vendedora e recebe apenas o benefício de R$1200 do governo federal para ajudar nos altos custos. Parte dos remédios que João precisa é fornecido pelo SUS, mas um medicamento específico para tratar dos ataques epilépticos é o principal problema e os pedidos na justiça têm demorado muito, conta. A última liminar só foi conquistada após mais de um ano de processo. — Está muito lento, a gente é humilhado, corre atrás, mas bate com a cara na porta o tempo todo — afirma a mãe, que não tem conseguido resposta nem para o pedido de fraldas, que pode ser feito caso o item não seja fornecido nas farmácias populares dos municípios. — Consegui só uma vez (fraldas). Agora, o novo pedido está na justiça federal, e não tive retorno ainda.
Antes da decisão da 1ª Turma do STF, alguns desses pedidos já eram federalizados por juízes estaduais. Mas, defensores dizem que agora a prática está crescendo. — Agora acharam um argumento para reforçar — afirma o defensor público de Santa Catarina Djoni Benedete, que diz ter cerca de 100 casos na mesma situação. Um dos casos atendidos por Benedete é de Josefa Alves, que precisa de cinco remédios, que custam R$ 800 mensais, para tratar enxaqueca crônica e depressão. Apesar de parte desses medicamentos constar no SUS, eles são destinados para outras finalidades, como tratamento de epilepsia. Por isso, ela precisou recorrer à justiça para ser atendida, e uma liminar a garantiu esse direito em 2019. Mas, em 2020, a juíza do caso mandou incluir a União no polo passivo — o que faria com que o processo fosse remetido à Justiça Federal — e então a ação no tribunal estadual foi extinta e a liminar anulada.
Após os defensores recorrerem, o caso será enviado a um juizado de pequenas causas, mas Benedete acredita que, provavelmente, o recurso será negado, sob o argumento do novo entendimento da 1ª Turma do STF. — Em alguns meses consigo comprar os remédios, em outros não. E quando compro, tomo em intervalos maiores, para durar mais — explica Josefa, que trabalha como técnica administrativa e conta com ajuda da família para os custos. — O peso financeiro é muito grande, a gente precisa escolher entre alimentação, contas, e a medicação. É uma batalha que não é fácil. Estados e municípios pediram que União fosse responsabilizada em ações, e assunto chegou ao STF Em 2019, após pressão de estados e municípios, que reclamavam do alto custo de muitos remédios adquiridos após decisões judiciais, o STF julgou o Tema 793, que trata da responsabilidade dos entes municipal, estadual e federal em ações relacionadas ao SUS. Em plenária, os ministros decidiram pela chamada “tese de responsabilidade”, ou seja, que qualquer um dos entes pode ser responsabilizado nesse tipo de processo. No entanto, em março, a 1ª Turma do STF, após reclamação do estado do Mato Grosso, decidiu que a União deve obrigatoriamente estar no polo passivo (ou seja, ser o réu da ação) em determinadas hipóteses, como no fornecimento de remédios oncológicos, de remédios financiados exclusivamente pela União e de serviços ainda não incorporados pelo SUS.
Mas defensores e advogados dizem que as hipóteses abriram muitas brechas subjetivas e diversos juízes estaduais de todo o país passaram a enviar qualquer tipo de pedido direto para a justiça federal. Dados de processos abertos para pedidos de insumos médicos na comarca de Niterói, aos quais O GLOBO teve acesso, ilustram como a lentidão toma conta dos trâmites quando um juiz decide enviar a ação para a Justiça Federal. Em maio, 13 processos foram declinados para a União, na comarca. Até aqui, ou seja, cerca de três meses após o declínio, apenas dois casos estão de fato tramitando na esfera federal, enquanto outros dois foram devolvidos para o Tribunal do Rio e nove sequer foram distribuídos. — Em regra, a justiça estadual é mais rápida. E um problema na Justiça Federal é que não conseguimos fazer arresto da União, porque o dinheiro normalmente não é localizado — explica Thaisa Guerreiro, coordenadora de Saúde e Tutela Coletiva da Defensoria do Rio. — Havia jurisprudência consolidada pelo STF de que um ente não poderia fazer “chamamento ao processo” em casos de saúde, justamente porque dificulta o acesso, gera discussão infundada e aí em vez de se garantir o direito do cidadão, se discute o direito do erário. No seu voto, o ministro Ricardo Lewandowski (favorável à tese de solidariedade) destacou que o objetivo nesses casos não é defender o erário dos estados, mas defender a vida. A defensora diz que a “complexidade” do funcionamento do SUS acaba resultando em interpretações equivocadas nos tribunais, especialmente na hipótese de “medicamentos não incorporados ao SUS”, o que tem motiva a maior parte dos envios das ações para a justiça federal. — Até pedido de fralda estão declinando, porque dizem que não é incorporado ao SUS, mas na verdade é uma política pública prevista, da farmácia popular.
Os juízes não conhecem o SUS, e estão caindo na pressão dos estados e municípios e aí mandam tudo para a Justiça Federal — afirma Guerreiro. Em Nota Técnica publicada no dia 17 de maio, a Defensoria Pública da União afirmou que “percebe-se o agravamento da insegurança jurídica nas ações que versam sobre direito à saúde, bem como a criação de novas barreiras de acesso à justiça e à saúde, que afetarão prioritariamente a população mais vulnerável”. A DPU ainda lembrou que a justiça estadual possui 9.606 varas e juizados especiais, enquanto a justiça federal pssui 984 varas. A desproporção também está presente nas defensorias: são 5.965 defensores públicos estaduais e 645 defensores públicos da União. Defensora pública estadual o Ceará Marilia Lucena explica que, dos cinco juizados de Fazenda Pública do estado, atualmente um juiz já está declinando competência em todas as ações do tipo. Como se trata de um juizado, que tem rito próprio e simplificado, os processos não podem ser remetidos à justiça federal e, então, são extintos, o que atrasa ainda mais o pedido dos clientes. — O novo entendimento está impedindo o direito dos mais vulneráveis. A União só deveria ser exigida para remédios de alta complexidade, e a DPU nem está em todos os municípios — explica a defensora, que defende que a decisão do STF deveria ser considerada apenas para discussão de ressarcimentos. — A medicação é para ser garantida, aí depois tem que ver, de acordo com critérios de divisão do financiamento do serviço pedido, qual ente ressarciria o outro. O estado pode solicitar ressarcimento à União após a liberação do dinheiro para um remédio, por exemplo. Especialista em direito médico, a advogada Mérces Nunes concorda com a defensora. Ela lembra, ainda, que uma recente decisão da 2ª Turma do STJ considerou dispensável a inclusão a União no polo passivo das ações que tratam do fornecimento de medicamento registrado na ANVISA, mesmo que não incorporado à lista do SUS. No julgamento, a ministra relatora Assusete Magalhães ressaltou que o STF fixou a tese de solidariedade e que o polo passivo pode ser formado por entes em conjunto ou por cada um isoladamente. — O processamento deste tipo de demanda perante à Justiça Federal além de extremamente moroso e lento, em nada contribui para o pronto e imediato atendimento das necessidades do paciente — diz Nunes.
Fonte: O Globo
Leia a matéria na íntegra acessando: https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2022/08/pedidos-por-remedios-na-justica-ficam-mais-lentos-apos-votacao-do-stf-sobre-acoes-relacionadas-ao-sus.ghtml